Mais de 200 anos após a primeira definição feita pelo médico cirurgião escocês James Braid, a Hipnose continua a ser aplicada em ambientes clínicos.
Seus uso nestes meios assim como a proliferação da pesquisa sobre este tema, levou à necessidade de buscar uma definição que permitisse uma linguagem comum mais bem definida sobre o que é Hipnose (a propósito, algo que sempre pareceu muito difícil de responder).
É nesse contexto que Elkins e colegas (Elkins et al., 2015), em conjunto com a Divisão 30 (Society of Psychological Hypnosis) da American Psychological Association, apresentaram uma definição destinada a fornecer um ponto de referência comum para médicos e pesquisadores, ao mesmo tempo em que permite sustentar perspectivas, teorias e hipóteses variadas.
O que é a hipnose?
“HIPNOSE é um estado de consciência envolvendo atenção focada e consciência periférica reduzida caracterizada por uma capacidade aprimorada de resposta à sugestão” (Elkins et al., 2015, p. 6) |
Este é o culminar de todos estes anos de desenvolvimento e o ponto de partida para a avaliação e avanço do trabalho de inúmeros pesquisadores deste século. Como médico, estudioso e praticante do método, concordo com a definição proposta.
A história da hipnose nos fornece um excelente exemplo da importância de compreender o contexto histórico em que se desenvolveu uma abordagem clínica particular. Conhecer sua longa e complexa aplicação ao longo dos séculos é essencial para entendermos o estado atual do conhecimento, sua utilização e pesquisa em ambientes clínicos na atualidade.
E por falar nos dias de hoje, ainda duvido que haja alguém que não queira ser uma pessoa cada dia melhor, nas diferentes áreas da vida. Pessoas são desejosas de novos aprendizados, de busca pela excelência, por desenvolver habilidades relacionais.
Neste aspecto, hoje sabemos que o tratamento com hipnose pode, além de controlar sintomas físicos e auxiliar no tratamento de transtornos psíquicos diversos, agir como uma ferramenta de mudança, oportunizando às pessoas acessarem seus recursos internos fundados na autoconfiança, liderança, coragem, dando suporte para construírem performance relacional, conquistas, metas e superação de medos.
Usando a Hipnose para fins de tratamento
Para atingir um objetivo de tratamento, a terapia com hipnose é chamada de hipnoterapia, hipnose terapêutica ou clínica. O paciente é assistido verbalmente por um terapeuta com treinamento e certificação em hipnose, comumente chamado de hipnoterapeuta. O hipnoterapeuta conduz o paciente a hipnose e concentra sua atenção em coisas como:
- sugestões mentais e associações de idéias;
- imagens e metáforas;
- exercícios para estimular a imaginação.
A pessoa nesse estado, pode ser direcionada a acessar recursos e memórias internas conscientemente acessíveis ou mesmo, em alguns casos, inacessíveis (como memórias reprimidas), o que pode em algumas situações contribuir com o tratamento.
Cautela na execução
Não obstante, técnicas que envolvam a elicitação de memórias devem ser executadas com cautela, em especial quando se tratam de memórias relacionadas a eventos altamente estressantes ou traumáticos.
Em hipnose uma memória poderá ser experimentada desde uma maneira subjetiva, onde o indivíduo não tem acesso a lembrança mas apenas a uma sensação interior ou sentimento ligado ao fato, até a ocorrência de fenômenos extremamente ab-reativos, os quais chamamos de “regressão associada”, onde há uma real percepção de “voltar no tempo” e de se estar vivendo realmente aquele episódio novamente.
Isto poderá ser contraproducente quando se trata de traumas sofridos no passado. Outra questão que envolve estes tipos de técnicas são as falsas memórias, assunto que será abordado em outro post.
Fica clara a necessidade de um profissional experiente e plenamente capacitado para o método. Em tese, o que oportuna o tratamento não é a Hipnose em si mas o trabalho terapêutico que será realizado enquanto o paciente se encontra sob Hipnose.
Assim, sobre o terapeuta, me parece razoável a afirmação: “Não trate com uso da Hipnose nada que você não saiba tratar sem o uso da Hipnose”. Por esta visão, a Hipnose agiria como um catalizador dentro de diferentes processos de tratamento que, feito de maneiras convencionais, costumam se processar muito mais lentamente.
Transe hipnótico e fenômenos hipnóticos
Sabemos que a Hipnose pode levar o sujeito a um estado de serenidade, comumente denominado transe hipnótico. Este transe pode variar de superficial a profundo. Neste último, chega-se a um estado que muito se assemelha ao sono fisiológico, apesar de tecnicamente não o ser uma vez que a consciência está mantida.
Além do transe hipnótico, devemos diferenciar o que são fenômenos hipnóticos. Estes seriam, a grosso modo, percepções alteradas do indivíduo em hipnose, com relação a realidade em sua volta, baseada em sugestões (dadas pelo terapeuta ou por auto sugestão) – quem aí nunca ouviu uma música do passado ou teve uma lembrança de algo ou alguém tão intensa que pôde até “sentir o cheiro” daquele perfume, ou daquele ambiente que já esteve?
Mas em terapia, nem todos os pacientes experimentarão transes profundos ou mesmo fenômenos hipnóticos. O entendimento atual é que, transe e fenômenos hipnóticos não são elementos necessários para que o tratamento ocorra.
O que importa é estar em hipnose o que, considerando a definição moderna já citada, diz respeito a atenção focada e consciência periférica reduzida, e isso ocorrerá invariavelmente desde que o paciente queira (permita).
Neste sentido, um freio consciente ou inconsciente ao processo é o medo ou a falta de confiança na relação paciente-terapeuta. Nem preciso dizer que cabe ao terapeuta habilidoso compreender e saber contornar essas situações.
A Hipnose como um catalizador de mudanças internas no indivíduo: a psicoterapia com hipnose.
No final do século XIX, o neurologista francês Jean-Martin Charcot, utilizava-se da hipnose para tratamentos de pacientes com distúrbios mentais. Sigmund Freud, influenciado por Charcot, passa também a usar o hipnose para tratar de distúrbios nervosos, induzindo o paciente a uma mudança no estado de consciência, o que permitia uma investigação nas condutas da pessoa.
A partir daí surge o método catártico e por fim, a associação livre, marca registrada da psicanálise.
Em tempos modernos, o médico psiquiatra americano Milton Erickson, foi sem dúvidas um dos nomes mais importantes para a difusão e validação científica da hipnose em psicoterapia.
Para Erickson, a terapia com hipnose é um processo interpessoal, ou seja, uma maneira pela qual uma pessoa se comunica com outra, de dentro para fora.
Erickson (foto acima), estudou profundamente a hipnose durante toda sua vida, demonstrando-a como um fenômeno natural da mente humana, bem como sua existência e efeitos no cotidiano. Utilizou a hipnose em praticamente todos os problemas psicológicos, sendo autor de inúmeros artigos, livros e pesquisas científicas na área. É considerado por muitos como o maior hipnoterapeuta do século XX devido a sua abordagem breve e voltada para a solução de problemas.
Nos dias de hoje é inegável a importância da Hipnose. Ela oferece inúmeros recursos para várias áreas da vida, apesar de gerar desconfiança, por ter sido usada indevidamente em palcos, muitas vezes contrariando os princípios da ética, ou por pessoas desqualificadas.
Praticamente isenta de perigo, quando é realizada por um profissional competente e bem preparado. Para o Conselho Federal de Medicina, a hipnose é reconhecida como valiosa prática médica, subsidiária de diagnóstico ou de tratamento, devendo ser exercida por profissionais devidamente qualificados e sob rigorosos critérios éticos.
Aspectos comumente presentes em processos de terapia com uso da Hipnose
São aspectos comumente presentes nas abordagens psicoterápicas com uso da hipnose nos dias atuais:
Uso de sugestões indiretas – simplesmente sugerir (“Gostaria de saber como seria se você fosse sentindo seu braço ficar cada vez mais pesado até que não conseguisse mais movê-lo…“), de um modo tranquilo e menos imperativo. Hipnose como jogo interacional – o “transe interacional consiste numa comunicação bilateral: os clientes não apenas ouvem comandos do operador, como dialogam com ele, tornando possível calibrar e/ou redirecionar os efeitos desejáveis para a obtenção de respostas ante o problema apresentado. Pequenas mudanças, passo a passo – convidar meticulosamente os clientes a cumprirem tarefas simples e prosaicas, que, ao final, resultam em mudanças profundas. Foco no sintoma – as representações verbais e sensoriais do sintoma pelo cliente permitem que este seja transformado, melhorando seu estado geral sob um efeito “bola de neve”. Respeito ao cliente – atenção centrada no cliente. Erickson, por exemplo, recomendava a seus terapeutas que se perguntassem “o que meu cliente quer fazer agora?” em vez de se perguntarem “o que eu, como terapeuta, devo fazer agora”. Hipnose como cooperação – a indução hipnótica é trabalhada no sentido de induzir à cooperação, terapeuta e cliente somando forças para superar as dificuldades do cliente. Comunicação precisa – o terapeuta deve estar consciente do que está comunicando ao sujeito, tanto por meio de palavras quanto através de seus comportamentos não-verbais. Adaptação da hipnoterapia – a abordagem terapêutica é adaptada de acordo com o modo de ser de cada terapeuta, tornando-se conhecida como “terapia estratégica” ou “terapia não- convencional”. Orientação para o futuro – Uma das propostas da terapia com hipnose é a conscientização do cliente de que ele não tem somente um passado extremamente importante: ele também tem um presente do qual depende o seu futuro. Viver o presente de modo congruente trará segurança para o futuro. Trata-se de uma abordagem extremamente prática, com o objetivo de, “ajudar os clientes a assegurarem-se das melhores possibilidades para viver efetivamente bem” |
Particularmente, considerando todos os aspectos acima, no set de terapia são empregados conjuntamente técnicas psicoterápicas com bases psicodinâmicas, behavioristas, cognitivo-comportamental e sistêmicas. Durante as sessões os pacientes são incentivados a desenvolver estratégias de enfrentamento aos problemas individuais, que estarão em questão durante o tratamento.
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Referências
Elkins, G. R., Barabasz, A. F., Council, J. R., & Spiegel, D. (2015). Advancing research and practice: The revised APA Division 30 definition of hypnosis. International Journal of Clinical and Experimental Hypnosis, 63(1), 1–9. doi:10.1080/00207144.2014.961870
Conselho Federal de Medicina. PROCESSO-CONSULTA CFM Nº 2.172/97. 1999. Disponível online em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/pareceres/BR/1999/42_1999.pdf
Erickson M.H., Hershman S., Secter I.L. Hipnose médica e odontológica: aplicações práticas. São Paulo: Livro Pleno, 2003. 337p.