Você vai ao gastro devido a aquela inconveniente dor abdominal. Depois de realizar vários exames ele lhe dá um diagnóstico de um “problema funcional” e lhe prescreve um “antidepressivo”.
Agora imagine uma outra situação. Você vai ao gastro devido a aquele inconveniente dor abdominal. Depois de realizar vários exames ele lhe dá um diagnóstico de um “distúrbio na interação entre o trato gastrointestinal e o cérebro”. Para o tratamento lhe prescreve um “neuromodulador”.
Em tese, nas duas situações foi feito o mesmo diagnóstico e tomada a mesma conduta. A diferença recai numa questão semântica. Mas pense bem, como você se sentiria em uma ou outra situação?
Uma recente discussão vem sendo feita por gastroenterologistas, envolvendo uma força tarefa da Fundação ROMA, uma das mais sérias e respeitadas no mundo em relação ao estudo das doenças que envolvem esta conexão entre trato digestivo e sistema nervoso central.
Está em pauta a mudança nas definições relacionadas a estes transtornos, envolvendo ainda a alteração na nomenclatura de classes de medicamentos que podem ter vários efeitos positivos também na saúde gastrointestinal. Vamos entender melhor do que exatamente isto se trata?
De antidepressivos para neuromoduladores
Na história da medicina, os medicamentos foram desenvolvidos e nomeados de acordo com a necessidade. Quando as pessoas reclamaram de dificuldade para respirar e asma foi diagnosticada, broncodilatadores foram desenvolvidos para agir nos receptores nos pulmões, permitindo a dilatação do músculo liso e tornando mais fácil respirar.
Se alguém tivesse uma lesão causando inflamação dolorosa das articulações, eram usados medicamentos antiinflamatórios. O mesmo conceito se aplicava a pacientes que se apresentavam em hospitais e asilos nas décadas de 1940, 50 e 60 com distúrbios emocionais e psicose.
Os tratamentos foram desenvolvidos para atingir os receptores no cérebro e alterar os níveis de certas moléculas, chamadas neurotransmissores, que eram direcionados para tratar esses problemas. De acordo, esses medicamentos foram então chamados de antidepressivos, ansiolíticos e antipsicóticos, com base em seus efeitos potencialmente previsíveis.
Agora sabemos que os medicamentos podem ter vários propósitos, por exemplo, a aspirina pode tratar a dor ou ser usada para prevenir um ataque cardíaco. Também aprendemos que os neurotransmissores que existem no cérebro também se encontram no intestino e, na verdade, há mais serotonina no intestino do que no cérebro.
Aproximadamente 90% de toda a serotonina no corpo humano está localizada no trato gastrointestinal. Sabemos que o trato gastrointestinal e o cérebro compartilham neurotransmissores que têm funções diferentes com base no órgão de interesse. Também sabemos que o sistema nervoso entérico está conectado ao sistema nervoso central e se originam no início do desenvolvimento fetal.
A proposta é passarmos a referir os “distúrbios gastrointestinais funcionais” como “transtornos na interação entre o trato gastrointestinal e o cérebro”. Para seu tratamento podemos usar medicações hoje conhecidas como antidepressivos ou ansiolíticos, assim, passaríamos a nos referir a elas como NEUROMODULADORES.
Usando este termo, reduziríamos o estigma que recaí sobre estes remédios e falaríamos de um modo mais amplo sobre a ação pretendida com seu uso. Como tal, poderíamos usar para tratar diarreia e constipação neuromoduladores periféricos (por exemplo, alosetron, linaclatida), e ao tratar a dor crônica, vômito crônico, neuromoduladores centrais (por exemplo, duloxetina, mirtazapina).
Afinal, por que o modo pelo qual chamamos os medicamento é importante?
Em primeiro lugar, chamar um medicamento de antidepressivo e usá-lo para tratar dor pode ser confuso para pacientes e mesmo para profissionais de saúde. Um clínico que não está familiarizado com medicamentos como os inibidores seletivos da receptação da serotonina (ISRS) pode inclusive não ver utilidade para eles em um paciente com dor crônica que não esteja apresentando distúrbios emocionais.
Ou pode escolher um ISRS para tratar a dor abdominal em uma situação em que este não vai ajudar. Na mesma linha, dizer a um paciente que você deseja iniciar um “antidepressivo” para tratar uma condição abdominal crônica pode dar-lhe a impressão de que o que está sentindo é devido à um quadro de depressão ou similar (ou seja, que não há um problema no seu trato digestivo e sua queixa é puramente uma questão psicoemocional).
A nova terminologia legitima toda uma classe de medicamentos, usados para dor crônica, distúrbios do sono, náuseas, transtornos do humor, ansiedade e muitos outros sintomas. Além disso, dá aos pacientes confiança para aderir ao uso de medicamentos que comprovadamente reduzem a dor e sintomas relacionados trato digestivo.
Embora possa levar algum tempo para que os profissionais de saúde se sintam mais confortáveis com essa nova nomenclatura, os pacientes também poderão passo a passo aprender a advogar por si mesmos. Sabendo que a dor crônica, náusea e tantos sintomas digestivos antes praticamente ignorados são tratáveis e que os distúrbios da interação intestino-cérebro existem e são uma importante entidade clínica.